Abordar o presente assunto torna-se um desafio enorme quando a informação que disponho é escassa e até certo ponto contraditória.
Em forma de nota, anuncio que toda a informação aqui exposta é baseada em leituras e depoimentos de tudo o que foi dito/escrito até a data da publicação deste texto.
Antes de entrar no cerne da questão, torna-se pertinente trazer uma definição do nosso objecto de análise: vala comum.
Por um lado, segundo William Haglund, no seu artigo intitulado "The Archaeology of Contemporary Mass Graves" - vala comum é uma cova normalmente localizada nos cemitérios onde um conjunto de cadáveres que não podem ser colocados em sepultura individual, ou que são de origem desconhecida ou ainda não reclamados são enterrados sem cerimónia alguma. Na maioria das vezes os mesmos não são registrados nos locais onde foram enterrados.
Por outro lado, a Organização das Nações Unidas (ONU) define como vala comum a cova que contém três ou mais vítimas de uma execução (Massacre).
Enquanto que a semântica estuda o significado e a interpretação do significado de uma palavra, de um signo, de
uma frase ou de uma expressão em um determinado contexto. Nesse campo de estudo se
analisa, também, as mudanças de sentido que ocorrem nas formas linguísticas devido a
alguns fatores, tais como tempo e espaço geográfico.
- ORIGEM DOS FACTOS
No dia 28 de abril, a Lusa noticiou a existência de uma vala comum com mais de cem corpos na Serra da Gorongosa, no centro de Moçambique, denunciada por camponeses. A agência recolheu vários testemunhos de camponeses que frequentam a região e contactou com entidades oficiais, nomeadamente a administração do distrito da Gorongosa e a Polícia da República de Moçambique.
Vários “sites” associaram ao texto desta notícia uma fotografia de valas comuns que não dizia respeito a Moçambique. Esta foto não foi divulgada pela Lusa e a Lusa não tem qualquer responsabilidade na sua difusão.
No dia 01 de Maio, a Lusa, com outros dois órgãos de comunicação social (Deutsche Welle e Rádio Comunitária da Gorongosa), localizou e documentou fotograficamente 15 corpos abandonados no mato, em dois locais entre os distritos de Macossa e Gorongosa, nas proximidades da localização apontada na primeira notícia.
Fotos destes cadáveres foram distribuídas pela Lusa aos seus clientes, em simultâneo com a divulgação da respetiva notícia.
Para além da informação da Lusa sobre este assunto, também a Deutsche Welle, a Al-Jazeera e órgãos de comunicação social moçambicanos, nomeadamente a STV, o jornal O País e o semanário Savana, noticiaram, entretanto, a descoberta de valas comuns naquela região de Moçambique. Notícias que tiveram como fonte o próprio trabalho desenvolvido no local por jornalistas dos respetivos órgãos de comunicação social.
- A ATITUDE DO GOVERNO
Num primeiro instante, a reação do Governo de Moçambique foi de tentar repelir a notícia de todas as formas possíveis, negando de forma peremptória a existência de qualquer vala comum.
As declarações de tais afirmações surgiram de todos os níveis do Governo, com maior incidência para a Polícia da República de Moçambique que negava a existência de tais corpos. Dados da Procuradoria-Geral da República viriam a confirmar a existência de apenas 11 corpos encontrados no local dos factos, enquanto outros apontavam para 13, segundo a PRM, tendo enterrado alguns dos corpos sem o devido cuidado médico, e deixado outros no mesmo local.
Porém, sem margem de manobras para fugir da realidade, a Primeira Comissão da Assembleia da República (Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e Legalidade), presidida por Edson Macuácua, iniciou um trabalho conjunto com os deputados da Frelimo e do MDM para colher factos que comprovassem ou não a existência da presumida vala comum.
Antes desta acção, a Primeira Comissão convocou o delegado da Lusa em Moçambique, Henrique Botequilha, a 27 de Maio, para prestar declarações no mesmo dia. A Lusa respondeu a todas as questões colocadas ao longo de quase uma hora de sessão, recusando revelar as suas fontes de informação que solicitaram anonimato.
A Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e Legalidade convocou igualmente André Catueira, colaborador da Lusa no centro de Moçambique, para prestar declarações sobre o mesmo assunto. O jornalista respondeu às questões colocadas pelos deputados no dia 30 de Maio, e afirmou ser impossível aceitar o convite para os guiar ao local da vala comum referida na notícia de 28 de Abril.
Já no local dos factos, mesmo antes de se terminar o trabalho em equipa, o Presidente da referida Comissão vinha a público (de forma surpreendente) anunciar os resultados do inquérito que davam conta da não existência de nenhuma vala comum, depois do trabalho realizado em Gorongosa, mas sem escalar o local onde os jornalistas teriam encontrado os corpos.
De recordar que
foi o mesmo Presidente (Edson Macuácua) que repreendeu o jornalista da Lusa por
ter publicado uma notícia sem antes ter escalado o local dos factos. No
mesmo diapasão, as autoridades locais e população interpelada pela comissão
negava a existência de tais valas, numa atitude clara de instrumentalização
política e medo.
Porém, no mesmo dia que eram feitas essas declarações, a AFP dava conta de outros corpos encontrados na Província de Manica, o que contaria por completo os pré-resultados da comissão de inquérito. Aliás, a atitude do Presidente da Comissão, viria dias depois a ser contestada pelo MDM, partido que fez parte do trabalho, reafirmando que há evidências claras da existência de possíveis valas comuns.
- OS NÚMEROS DA DISCÓRDIA
Chegados a esta parte, fica claro que o que está em jogo nesse assunto é uma questão de discórdia semântica sobre com que dados se pode definir uma vala comum. Por outro lado, fica difícil apurar a verdade dos factos quando dia após dia surgem novas notícias.
Na base do que é público até ao momento, é preciso reafirmar que a Lusa incorreu ao erro de ter publicado uma notícia de tamanha responsabilidade sem a devida certificação de que se estava mesmo diante de 120 corpos na referida vala, mas isso não retira o mérito da notícia que despoletou um assunto que quem de direito não conseguiu em tempo útil apurar, na qualidade guardião da segurança dos cidadãos deste país.
O factor número (quantos corpos) não deve ser o elemento central da nossa discussão, pois, tratam-se de corpos abandonados naquele lugar de forma estranha e até agora desconhecida. A nossa preocupação deve ser sobre as causas e os autores do crime contra Direitos Humanos ali exposto.
Não podemos admitir que as autoridades neguem a existência da referida vala comum se escudando no facto dos números avançados pela Lusa na primeira notícia serem ilusórias, enquanto as definições acima apresentadas mostram como é que chegamos a definição de uma vala comum.
Em tempo de guerra tudo é possível acontecer, onde em larga escala acontecem atropelos aos Direitos Humanos (execuções sumárias). A informação tende a ser escassa e as pessoas ficam com medo de expressar - a verdade é que mais sofre – e o medo de expressar em público aumenta.
P.S: No momento que se publica este texto ainda não se produziu o relatório final da Comissão de Inquérito, embora se saibam os pré-resultados que dela irão advir.
Descarregue AQUI o artigo.
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